Fernando Pessoa
Que outra coisa é a profecia senão uma tentativa de dar um sentido
(divinamente garantido) ao processo histórico?
As Trovas do Bandarra
Quase tudo o que se sabe com certeza da vida de
Gonçalo Anes Bandarra consta do seu processo inquisitorial, publicado por
Teófilo Braga na sua História de Camões (t. I, Porto 1873). Ele deve ter
nascido por volta de 1500 na vila de Trancoso (...).
Antes da publicação do seu processo, julgava-se que
ele era pobre e de origem muito modesta. Mas na sua declaração ao Tribunal
lemos que «fora rico e abastado, mas que queria mais sua pobreza em dizer a
verdade e o que cumpria à sua consciência, que não dizer outra cousa». Também
se julgava que o sapateiro não sabia ler nem escrever, mas que ditava as suas
profecias ao Padre Gabriel João de Trancoso.
Era assim que se interpretava uma das suas trovas Hoje sabe-se que Bandarra não era nenhum
analfabeto. Ele mantinha correspondência com várias pessoas do Reino.
(...) O sapateiro devia ter também conhecimento das
profecias atribuídas a Santo Isidoro (...)
Estas coplas castelhanas compenetravam-no da vinda de um Rei Encoberto, predestinado
para desbaratar o Império Otomano e estabelecer a Monarquia Mundial. É muito
provável que Bandarra chegasse à ideia de compor as suas trovas, tomando por
modelo as coplas do país vizinho. (...)
As suas profecias rimadas foram-se rapidamente
divulgando pelo país, e não tardaram a encontrar leitores na capital do Reino.
Os cristãos-novos passaram a venerá-lo como um profeta solidário com eles nas
suas esperanças messiânicas. Sabemos que Bandarra, por duas vezes, se deteve
por algum tempo em Lisboa (ca. 1531 e em 1539), onde era muito procurado pela
gente da nação. Tal alvoroço devia despertar as suspeitas da Inquisição
recém-estabelecida. Bandarra foi preso e levado para Lisboa (1540). A Mesa
ouviu diversas testemunhas e impôs-lhe (3 de Outubro de 1541) um castigo
relativamente brando: o de abjurar solenemente as suas trovas na procissão do
auto-da-fé do dia 23 do mesmo mês.
Pela sentença se pode ver que Bandarra não foi
acusado de judaísmo, nem sequer passava por cristão-novo. O que se lhe imputava
era causar alvoroço entre os cristãos-novos com as suas trovas, que eles
tendiam a interpretar em sentido judaico.
O erudito D. João de Castro
fez imprimir uma grande parte das profecias rimadas. Para ele, o grande assunto do Bandarra era D. Sebastião, que, depois da sua derrota em Marrocos teria sido perseguido e encarcerado pelos Castelhanos em Itália por volta de 1600. Sebastião vivia ainda, e havia de aparecer.
Com o passar dos anos, fomentado pelo clero português, o prestígio do profeta de Trancoso foi crescendo com as humilhações cada vez piores da pátria. Centenas de leitores procuravam nas trovas motivos de consolo e esperança. Elas eram leitura proibida, incluídas como estavam, desde 1581, no «Catálogo dos Livros Proibidos», mas o anátema, em vez de amedrontar os leitores, excitava-lhes a curiosidade.
Nos finais dos anos 30 do século XVII, as
esperanças na libertação nacional começavam a concretizar-se na pessoa de D.
João, o então Duque de Bragança. Conformemente, as trovas do Bandarra passavam
a ser estudadas e interpretadas numa respectiva bragantina (de apoio aos
Braganças). Eram sobretudo os seguintes versos que aos Restauradores pareciam
carregados de um profundo significado profético:
Já o tempo desejado
é chegado (...)
O Rei novo é alevantado,
já dá brado,
já assoma a sua bandeira
(...)
Saia, saia esse Infante
bem andante!
O seu nome é Dom João!
A interpretação sebastianista do Encoberto cedera a
uma interpretação nitidamente joanista. António Vieira foi o grande porta-voz
desta corrente.
[As trovas apresentam] visões de futuras felicidades e catástrofes com profecias muito enigmáticas sobre o tempo em que se hão de cumprir. Alego aqui duas quadras (156 e 157), que exaltam a harmonia universal no Quinto Império:
Todos terão um amor,
gentios como pagãos;
os judeus serão cristãos,
sem jamais haver error.
Na época de D.
João V o interesse por Bandarra renasceu. Um Bandarra adaptado às novas circunstâncias
e à nova mentalidade; menos bíblico, menos patriótico, menos heroico, mas mais
social e mais moralista.
Criaram-se o segundo e o terceiro Corpo das Trovas do
Bandarra (…), atribuindo-as sem escrúpulos ao profeta. Elas referem-se à construção do palácio-convento
de Mafra, cujo nome não se menciona de modo explícito, mas adivinha-se
facilmente pelas estrofes seguintes:
Entre montes muito altos
Não quero olhar mais nada:
vou pregando os meus saltos.
Cinco letras tem o nome,
e duas da mesma casta.
Olhe cada um o que gasta
para não morrer de fome.
[Ao longo dos séculos, várias gerações retomaram o interesse] pelas trovas do Bandarra, procurando nelas a decifração do mistério da história. Que outra coisa é a profecia senão uma tentativa de dar um sentido (divinamente garantido) ao processo histórico?
Com os séculos XIX e XX, liberalizada e secularizada, a sociedade portuguesa foi tomando caminhos mais racionais para compreender e interpretar o seu destino histórico.
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