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23 novembro 2012

A profecia e o sentido do processo histórico

O futuro de Portugal - que não calculo mas sei - está escrito já, para quem saiba lê-lo, nas trovas do Bandarra...
Fernando Pessoa

  
 Que outra coisa é a profecia senão uma tentativa de dar um sentido
(divinamente garantido) ao processo histórico?
  As Trovas do Bandarra
José van den Besselaar

Quase tudo o que se sabe com certeza da vida de Gonçalo Anes Bandarra consta do seu processo inquisitorial, publicado por Teófilo Braga na sua História de Camões (t. I, Porto 1873). Ele deve ter nascido por volta de 1500 na vila de Trancoso (...).

Antes da publicação do seu processo, julgava-se que ele era pobre e de origem muito modesta. Mas na sua declaração ao Tribunal lemos que «fora rico e abastado, mas que queria mais sua pobreza em dizer a verdade e o que cumpria à sua consciência, que não dizer outra cousa». Também se julgava que o sapateiro não sabia ler nem escrever, mas que ditava as suas profecias ao Padre Gabriel João de Trancoso.

Era assim que se interpretava uma das suas trovas  Hoje sabe-se que Bandarra não era nenhum analfabeto. Ele mantinha correspondência com várias pessoas do Reino.

(...) O sapateiro devia ter também conhecimento das profecias atribuídas a Santo Isidoro (...)
Estas coplas castelhanas compenetravam-no da vinda de um Rei Encoberto, predestinado para desbaratar o Império Otomano e estabelecer a Monarquia Mundial. É muito provável que Bandarra chegasse à ideia de compor as suas trovas, tomando por modelo as coplas do país vizinho. (...)

As suas profecias rimadas foram-se rapidamente divulgando pelo país, e não tardaram a encontrar leitores na capital do Reino. Os cristãos-novos passaram a venerá-lo como um profeta solidário com eles nas suas esperanças messiânicas. Sabemos que Bandarra, por duas vezes, se deteve por algum tempo em Lisboa (ca. 1531 e em 1539), onde era muito procurado pela gente da nação. Tal alvoroço devia despertar as suspeitas da Inquisição recém-estabelecida. Bandarra foi preso e levado para Lisboa (1540). A Mesa ouviu diversas testemunhas e impôs-lhe (3 de Outubro de 1541) um castigo relativamente brando: o de abjurar solenemente as suas trovas na procissão do auto-da-fé do dia 23 do mesmo mês.

Pela sentença se pode ver que Bandarra não foi acusado de judaísmo, nem sequer passava por cristão-novo. O que se lhe imputava era causar alvoroço entre os cristãos-novos com as suas trovas, que eles tendiam a interpretar em sentido judaico.
 
O erudito D. João de Castro fez imprimir uma grande parte das profecias rimadas. Para ele, o grande assunto do Bandarra era D. Sebastião, que, depois da sua derrota em Marrocos teria sido perseguido e encarcerado pelos Castelhanos em Itália por volta de 1600. Sebastião vivia ainda, e havia de aparecer.


Com o passar dos anos, fomentado pelo clero português, o prestígio do profeta de Trancoso foi crescendo com as humilhações cada vez piores da pátria. Centenas de leitores procuravam nas trovas motivos de consolo e esperança. Elas eram leitura proibida, incluídas como estavam, desde 1581, no «Catálogo dos Livros Proibidos», mas o anátema, em vez de amedrontar os leitores, excitava-lhes a curiosidade.
 
Nos finais dos anos 30 do século XVII, as esperanças na libertação nacional começavam a concretizar-se na pessoa de D. João, o então Duque de Bragança. Conformemente, as trovas do Bandarra passavam a ser estudadas e interpretadas numa respectiva bragantina (de apoio aos Braganças). Eram sobretudo os seguintes versos que aos Restauradores pareciam carregados de um profundo significado profético:

Já o tempo desejado
é chegado (...)
O Rei novo é alevantado,
já dá brado,
já assoma a sua bandeira
(...)

Saia, saia esse Infante
bem andante!
O seu nome é Dom João!



A interpretação sebastianista do Encoberto cedera a uma interpretação nitidamente joanista. António Vieira foi o grande porta-voz desta corrente.
 [As trovas apresentam] visões de futuras felicidades e catástrofes com profecias muito enigmáticas sobre o tempo em que se hão de cumprir. Alego aqui duas quadras (156 e 157), que exaltam a harmonia universal no Quinto Império:
Todos terão um amor,
gentios como pagãos;
os judeus serão cristãos,
sem jamais haver error.
 
 Na época de D. João V o interesse por Bandarra renasceu. Um Bandarra adaptado às novas circunstâncias e à nova mentalidade; menos bíblico, menos patriótico, menos heroico, mas mais social e mais moralista.
Criaram-se o segundo e o terceiro Corpo das Trovas do Bandarra (…), atribuindo-as sem escrúpulos ao profeta. Elas referem-se à construção do palácio-convento de Mafra, cujo nome não se menciona de modo explícito, mas adivinha-se facilmente pelas estrofes seguintes:
Entre montes muito altos
está uma casa sagrada.
Não quero olhar mais nada:
vou pregando os meus saltos.
 
Cinco letras tem o nome,
e duas da mesma casta.
Olhe cada um o que gasta
para não morrer de fome.
 
Mas não tardará a aparecer o Encoberto.

 
[Ao longo dos séculos, várias gerações retomaram o interesse] pelas trovas do Bandarra, procurando nelas a decifração do mistério da história. Que outra coisa é a profecia senão uma tentativa de dar um sentido (divinamente garantido) ao processo histórico?

Com os séculos XIX e XX,  liberalizada e secularizada, a sociedade portuguesa foi tomando caminhos mais racionais para compreender e interpretar o seu destino histórico.


 
NOTA: texto com supressões e adaptações (ligações interfrásicas).


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