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06 maio 2015

O narrador de Memorial


Ninguém melhor que o próprio autor para falar do que fez, como fez e por quê.

Lê, pois, o texto de José Saramago:

Conhecemos o narrador que se comporta de um modo imparcial, que vai dizendo escrupulosamente o que acontece, conservando sempre a sua própria subjectividade fora dos conflitos de que é espectador. Mas há um outro tipo de narrador, mais complexo, que não tem uma voz única: é um narrador substituível, um narrador que o leitor vai reconhecendo como constante ao longo da narrativa, mas que algumas vezes lhe causará a estranha impressão de ser outro. Digo “outro”, porque ele se colocou num diferente ponto de vista do primeiro narrador. O narrador será também inesperadamente um narrador que se assume como pessoa colectiva. Será igualmente uma voz que não se sabe de onde vem e que se recusa a dizer quem é, ou usa de uma arte maquiavélica que leve o leitor a sentir-se identificado com ele, a ser, de algum modo, ele. E pode finalmente, mas de um modo não explícito, ser a voz do próprio autor, dado que o autor, capaz de fabricar todos os narradores que entender, porquanto ele sabe, e não o esquece nunca, tudo quanto tiver acontecido depois da vida delas [as personagens].

José Saramago, (1999) IN Jornal de Letras

Narrador

Focalização:
Omnisciente
- possui um conhecimento absoluto, tanto sobre as personagens, como sobre os eventos, os sonhos, os desejos…;
- —move-se no presente, no passado e, consequentemente, no futuro.
É como um deus na narrativa: tudo vê e tudo sabe.
 
Exemplo (antecipação e comentários):
" (...) nesta terra de Mafra não há pátios de comédias, não há cantarinas nem representantes, ópera só em Lisboa, para vir o cinema ainda faltam duzentos anos, quando houver passarolas a motor, muito custa o tempo a passar, até que chegue a felicidade, olá."

Interna
a voz plural, polifónica do narrador revela-se quando adota o ponto de vista de uma personagem que vive a história, por ex: Sebastiana Maria de Jesus, no auto-de-fé.

Externa - quando se limita a contar o que vê.
O narrador de Memorial tem amiúde uma posição interventiva, claramente subjetiva:
-      quando  tece juízos, opiniões e comentários
-      quando  ironiza no tratamento das personagens (D. João V, por ex.)
-      quando  recorre com frequência à técnica do contraste (ex. início cap. III)
-      quando usa registos de língua ou marcas da contemporaneidade

Estas últimas estão, amiúde, associadas à ironia :
-      o nome do próprio Saramago
-      a moda do bronzeado
-      os cravos do 25 de abril
-      a existência do cinema como entretenimento
-      o parto sem dor
-      as cores vermelho e verde da bandeira da república portuguesa

Estatuto do narrador:
É heterodiegético, na maior parte da obra (não participa na diegese)
É homodiegético, com a intenção de captar a atenção do narratário que se sente participante, por ex. em:

"Já lá vai pelo mar fora o Padre Bartolomeu Lourenço, e nós que iremos fazer agora, sem a próxima esperança do céu, pois vamos às touradas que é bem bom divertimento|
  
Nestas ocasiões, o narrador cede a sua voz narrativa a outros narradores, como é, por exemplo, o caso de Manuel Milho, tornando-se assim homodiegético.
– Por vezes torna-se autodiegético, quando representa um pensamento (não confundir com os diálogos) de uma personagem:

"e aquele monstro de pedra a resvalar quando devia estar arado, imóvel quando deveria mexer-se, amaldiçoado seja tu, mais quem da terra te mandou tirar e a nós arrastar por estes ermos.”

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