Quem não leu em férias aproveite para ler estes dois exertos, que vão ser utilizados para a prova oral, em Lisboa:
Secundário
Teolinda Gersão. A cidade de Ulisses. Sextante Editora
«A ideia que guardo é a da casa como um espaço dividido, o espaço ameaçador do
meu pai e o mundo aventuroso e secreto da minha mãe. Passa-se de um para o outro
através da escada: o sótão era um lugar ilimitado, como se boiasse no ar ou assentasse nas
nuvens. A minha mãe estendia na mesa uma folha de papel e punha ao meu alcance lápis
de cor, pinceis e tintas.
Então tudo começava a ser possível: bastava eu querer e uma coisa aparecia: o sol,
um pássaro, uma árvore, uma folha de erva. Ela dizia sim, e sorria. Éramos cúmplices e
partilhávamos um poder mágico, cada um desenhando numa folha de papel. Estávamos no
centro do mundo, e ele obedecia. Fazíamos o sol subir no horizonte, púnhamos um carro na
estrada, um moinho um monte, pessoas acenando das janelas. Tudo o que quiséssemos
acontecia. Tudo.
Pintar, descobrir, nunca acabava. Apenas era interrompido por tarefas desprezíveis e
inúteis como comer, lavar as mãos, tomar banho, ir para a cama, dormir. Mas no dia
seguinte recomeçava, como se não tivesse sido interrompido. Cada dia era novo e trazia
coisas novas, o jogo de pintar nunca se gastava.»
Virginia Woolf. Flush, uma biografia. Relógio d’Água
«Após tais humilhações qualquer cão ou até qualquer ser humano sentir-se-ia
desfeito, mas Flush, apesar da sua brandura e suavidade, tinha um brilho intenso nos olhos.
As suas paixões ora se manifestavam como chamas ardentes, ora como fogo latente
coberto de cinzas. Resolveu encontrar-se com o inimigo frente a frente e a sós. Não
consentiria que terceiros interrompessem este combate final. A luta devia ser apenas entre
os dois. Uma terça-feira de tarde, dia vinte e um de Julho, desceu sorrateiramente as
escadas e esperou no vestíbulo. Não teve de esperar muito. Após uns momentos ouviu os
passos pesados, na rua, e a pancada na porta, já tão seus conhecidos. Mr. Browning entrou.
Pressentindo vagamente um ataque eminente, e estando resolvido a enfrentá-lo com todo
espírito de conciliação, trouxera um pacote de bolos. Ali estava Flush no vestíbulo. Mr.
Browning, cheio de boas intenções, tentou acaricia-lo; até talvez lhe tivesse oferecido um
bolo. O gesto foi suficiente. Flush saltou para o inimigo com tal violência que não há
comparação possível. Mais uma vez os seus dentes abocanharam as calças de Mr.
Browning. Mas infelizmente, com a excitação do momento, esquecera-se do mais
importante – o silêncio. Ladrou; atirou-se a Mr. Browning e ladrou furiosamente. Todo aquele
ruído foi suficiente para alertar o pessoal da casa. Wilson precipitou-se pelas escadas
abaixo. Wilson bateu-lhe com força. Wilson dominou-o totalmente. Wilson arrastou-o de uma
maneira humilhante. A humilhação estava em ter atacado Mr. Browning e ter sido Wilson a
bater-lhe. Mr. Browning não levantara um dedo e, levando os bolos, continuou a subir
sozinho as escadas, até ao quarto, sem ter sido ferido, sem mostrar qualquer emoção. Flush
foi levado dali.»
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