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13 janeiro 2012

F. Pessoa: PÁGINAS ÍNTIMAS E DE AUTO-INTERPRETAÇÃO

Um raio hoje deslumbrou-me de lucidez. Nasci.


[ms/manuscrito. 1910 (?)]

Eu era um poeta impulsionado pela filosofia, não um filósofo dotado de faculdades poéticas. Adorava admirar a beleza das coisas, descortinar no imperceptível, através do que é diminuto, a alma poética do universo.

Há poesia em tudo - na terra e no mar, nos lagos e nas margens dos rios. Há-a também na cidade - não o neguemos - facto evidente para mim enquanto aqui estou sentado: há poesia nesta mesa, neste papel, neste tinteiro; há poesia na trepidação dos carros nas ruas; em cada movimento ínfimo, vulgar, ridículo, de um operário que, do outro lado da rua, pinta a tabuleta de um talho.

O meu sentido interior de tal modo predomina sobre os meus cinco sentidos que – estou convencido – vejo as coisas desta vida de modo diferente do dos outros homens. Existe para mim – existia – um tesouro de significado numa coisa tão ridícula como uma chave, um prego na parede, os bigodes de um gato. Encontro toda uma plenitude de sugestão espiritual no espectáculo de uma ave doméstica com os seus pintainhos que, com ar pimpão, atravessam a rua. Encontro um significado mais profundo do que as lágrimas humanas no aroma do sândalo, nas latas velhas jazendo numa montureira, numa caixa de fósforos caída na valeta, em dois papéis sujos que, num dia ventoso, rolam e se perseguem rua abaixo. É que poesia é espanto, admiração, como de um ser tombado dos céus em plena consciência da sua queda, atónito com as coisas. Como de alguém que conhecesse a alma das coisas e se esforçasse por rememorar esse conhecimento, lembrando-se de que não era assim que as conhecia, não com estas formas e nestas condições, mas de nada mais se recordando.


[dact][1910?]
Cumpre-me agora dizer que espécie de homem sou. Não importa o meu nome, nem quaisquer outros pormenores externos que me digam respeito. É acerca do meu carácter que se impõe dizer algo.
Toda a constituição do meu espírito é de hesitação e dúvida. Para mim, nada é nem pode ser positivo; todas as coisas oscilam em torno de mim, e eu com elas, incerto para mim próprio. Tudo para mim é incoerência e mutação. Tudo é mistério, e tudo é prenhe de significado. Todas as coisas são «desconhecidas», símbolos do Desconhecido. O resultado é horror, mistério, um medo por de mais inteligente.

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