Total visualizações

29 setembro 2011

A Importância da Literatura

por Mario Vargas Llosa
Em feiras de livros ou mesmo livrarias, freqüentemente alguém se aproxima pedindo-me autógrafo. "É para minha mulher, filha ou mãe", explica. "Ela adora ler!" De pronto pergunto: "E o senhor? Não gosta de ler?" E a resposta é quase sempre a mesma: "Gosto, mas sou muito ocupado."

Já ouvi essa explicação dezenas de vezes. Esse homem - e milhares outros como ele - tem tantos afazeres importantes, tantas obrigações e responsabilidades, que não pode perder seu precioso tempo mergulhado num romance.

Segundo esse raciocínio, a literatura seria uma atividade dispensável, uma diversão que somente pessoas com muito tempo livre poderiam se permitir.

Gostaria de apresentar alguns argumentos contra a idéia da literatura como passatempo e em prol de considerá-la, além de uma das ocupações mais estimulantes e enriquecedoras do espírito humano, uma atividade insubstituível para a formação de cidadãos na sociedade moderna e democrática. Por essa razão, ela deveria ser semeada nas famílias desde a infância e fazer parte de todos os programas educacionais.

Vivemos numa era de especialização em virtude do extraordinário desenvolvimento da ciência e da tecnologia, e da conseqüente fragmentação do conhecimento em incontáveis avenidas e compartimentos.

A especialização traz benefícios. Possibilita pesquisa e experimentos, e é a força motriz do progresso. Mas também destrói os denominadores comuns culturais que permitem a coexistência, a comunicação e a solidariedade. E leva à separação dos seres humanos em guetos culturais de especialistas, confinados - pela linguagem, por códigos de conduta e pelo conhecimento particularizado - a uma especificidade contra a qual um antigo provérbio já nos advertia: não se concentre tanto na folha, a ponto de esquecer que ela é parte da árvore e esta, da floresta.

Em grande medida, a noção da existência dessa floresta depende do senso de conjunto que une a sociedade e não a deixa se desintegrar numa centena de especificidades. A ciência e a tecnologia, portanto, já não podem desempenhar esse papel unificador da cultura.

A literatura, por sua vez, foi e, enquanto existir, continuará sendo um denominador comum da experiência humana. Aqueles de nós que leram Cervantes, Shakespeare, Dante ou Tolstoi entendem uns aos outros e se sentem indivíduos da mesma espécie porque, nas obras desses escritores, aprenderam o que partilhamos com seres humanos, independentemente de posição social, geografia, situação financeira e período histórico.

Nada nos protege melhor da estupidez do preconceito, do racismo, da xenofobia, do sectarismo religioso ou político e do nacionalismo excludente do que esta verdade que sempre surge na grande literatura: todos são essencialmente iguais. Nada nos ensina melhor do que os bons romances a ver nas diferenças étnicas e culturais a riqueza do legado humano e a estimá-las como manifestação da multifacetada criatividade humana.

Ler boa literatura é ainda aprender o que e como somos - em toda a nossa humanidade, com nossas ações, nossos sonhos e nossos fantasmas -, tanto no espaço público como na privacidade de nossa consciência. Esse conhecimento se encontra apenas na literatura. Nem mesmo os outros ramos das ciências humanas - a filosofia, a história ou as artes - conseguiram preservar essa visão integradora e um discurso acessível ao leigo, pois também eles sucumbiram ao domínio da especialização.

O elo fraternal que a literatura estabelece entre os seres humanos transcende todas as barreiras temporais. A sensação de ser parte da experiência coletiva através do tempo e do espaço é a maior conquista da cultura, e nada contribui mais para renová-la a cada geração do que a literatura.

O que a literatura deu à humanidade, então?

Um de seus primeiros efeitos benéficos ocorre no plano da linguagem. Uma sociedade sem literatura escrita se exprime com menos precisão, riqueza de nuances, clareza, correção e profundidade do que a que cultivou os textos literários.

Uma humanidade sem romances seria muito parecida com uma comunidade de gagos e afásicos. Isso também vale para o indivíduo. As pessoas que nunca lê, lê pouco ou lê apenas lixo pode falar muito, mas vai sem dizer pouco, porque dispõe de um repertório mínimo de palavras para se expressar.

Não se trata de uma limitação somente verbal, mas também intelectual, uma indigência de idéias e conhecimento, porque os conceitos pelos quais assimilamos a realidade não são dissociados das palavras que nossa consciência usa para reconhecê-los e defini-los.

Nenhuma disciplina substitui a literatura na formação da linguagem. O conhecimento transmitido por manuais técnicos e tratados científicos é fundamental, mas eles não nos ensinam a nos exprimir corretamente. Ao contrário, com freqüência são mal escritos porque os autores, às vezes expoentes indiscutíveis em sua profissão, não sabem transmitir seus tesouros conceituais.

Outro motivo para se conferir à literatura um lugar de destaque na vida das nações é que, sem ela, a mente crítica - verdadeiro motor das mudanças históricas e melhor escudo da liberdade - sofreria uma perda irreparável. Porque toda boa literatura é um questionamento radical do mundo em que vivemos. Qualquer texto literário de valor transpira uma atitude rebelde, insubmissa, provocadora e inconformista.

A literatura apazigua essa insatisfação existencial apenas por um momento, mas nesse instante milagroso, nessa suspensão temporária da vida, somos diferentes: mais ricos, mais felizes, mais intensos, mais complexos e mais lúcidos. A literatura nos permite viver num mundo onde as regras inflexíveis da vida real podem ser quebradas, onde nos libertamos do cárcere do tempo e do espaço, onde podemos cometer excessos sem castigo e desfrutar de uma soberania sem limites. Como não nos sentirmos enganados depois de ler "Guerra e Paz" ou "Em Busca do Tempo Perdido" e voltar a este mundo de detalhes insignificantes, obstáculos, limitações, barreiras e proibições que nos espreitam de todo canto e em cada esquina corrompem nossas ilusões?

Quer dizer, a vida imaginada dos romances é melhor: mais bonita e diversa, mais compreensível e perfeita. Talvez seja esta a maior contribuição da literatura ao progresso: lembrar que o mundo é malfeito, e que poderia ser melhor, mais parecido com o que a imaginação é capaz de criar.

A sociedade livre e democrática requer cidadãos responsáveis, críticos, independentes, difíceis de manipular, em constante efervescência espiritual e cientes da necessidade de examinar continuamente o mundo em que vivemos, para tentar aproximá-lo do mundo em que gostaríamos de viver.

Sem insatisfação e rebeldia, ainda viveríamos em estado primitivo, a história teria parado, o indivíduo não teria nascido, a ciência não teria alçado vôo, os direitos humanos não teriam sido reconhecidos e a liberdade não existiria. Tudo isso nasce dos atos de desafio a uma vida que se mostra insuficiente ou intolerável. Para esse espírito que despreza a vida como ela é - e, com a insensatez de Dom Quixote, tenta tornar o sonho realidade -, a literatura serve de magnífica espora. A verdade é que o desenvolvimento da mídia audiovisual - que ao mesmo tempo que revoluciona as comunicações monopoliza cada vez mais o tempo que dedicamos ao lazer, relegando a leitura a segundo plano - permite-nos imaginar para um futuro próximo uma sociedade moderníssima, repleta de computadores, telas e microfones, mas sem livros.

Temo que esse mundo cibernético seja profundamente incivilizado, sem espírito, apático - uma resignada humanidade de robôs.

Evidentemente , é muito improvável que essa terrível perspectiva venha algum dia a se concretizar. Não existe um destino que decida por nós o que vamos ser. Depende de nosso discernimento e de nossa vontade que essa utopia macabra se realize ou se apague.

Se queremos evitar o desaparecimento dos romances - ou sua restrição ao sótão dos objetos inúteis - e com isso o desaparecimento da própria fonte que estimula a imaginação e a insatisfação, que refina nossa sensibilidade e nos ensina a falar com eloqüência e precisão, que nos torna livres e nos garante uma vida mais rica e intensa, então devemos agir. Precisamos ler bons livros e incitar à leitura os que vêm depois de nós.


(*) Este texto ao lado é da março de 2003 da revista Seleções Reader's Digest (http://www.selecoes.com.br). O título original é "Um mundo sem romances". Mario Vargas Llosa é um escritor peruano.


Lê. Discute. Integra as reflexões no texto argumentativo
que terás de fazer sobre o tema proposto em 26 Set.

A literatura como experiência de liberdade



Grandes Portugueses - Camões e Vasco da Gama


(vídeos da série da RTP Grandes Portugueses - excertos)

Camões, Os Lusíadas e a sua época


GRANDES LIVROS - OS LUSÍADAS

Os Lusíadas - diagnóstico lúcido e sombrio de uma época


Os Lusíadas - exaltação e consciência crítica

Nem só de exaltação e glorificação vivem Os Lusíadas. Camões é também a consciência crítica que faz o diagnóstico lúcido e sombrio de uma decadência que se aproxima. Não desconhece nem esconde os erros, os defeitos e os crimes de tantos portugueses. No final do canto VII denuncia com mágoa a hipocrisia, o espírito de adulação, o abuso do poder, a exploração dos humildes; e queixa-se com ironia amarga da ingratidão dos contemporâneos. Camões lembra que a Cristandade atravessa um momento crítico abalada no seu interior pelas divisões religiosas motivadas pela Reforma, e ameaçada do exterior pelo poder turco que alastra da índia até à Europa Central. É justamente esta situação de enfraquecimento que a gesta dos descobrimentos vem compensar. Mas entretanto, sentimos o poeta tremer perante o perigo e perguntar: Vencemos I Somos derrotados? Nesta obra que canta a ousadia e a coragem, o medo também se diz na fala do Velho do Restelo, onde se ouve a voz do passado inquieto perante o futuro. Os Portugueses vão abandonar a segurança da Terra, a estabilidade, e lançar-se na aventura marítima, no risco do desconhecido. É esse momento que simboliza toda a despedida, o cortar das amarras.

Mas pior do que a fala do Velho do Restelo é a conclusão da obra, terminando o canto que se reclama de «puras verdades» com uma recompensa imaginária. Enquanto toda a acção narrada se passa no plano real histórico, o prémio consiste num sonho. Um sonho maravilhoso... mas um sonho. ..

Afinal a apoteose encerra um fundo pessimista, confessa que o poeta não acredita na recompensa real dos heróis, não confia na justiça divina. Celebra um povo, mas ao mesmo tempo revela a incapacidade que esse povo tem em saber reconhecer os seus filhos mais dignos. É esta bipolaridade, esta distância entre o épico e o anti-épico, entre o ser e o parecer que atinge o cerne da obra ou o seu equilíbrio, pondo em causa a sua finalidade épica que lhe esteve na origem.

Tudo isto é a expressão de um mundo em crise. No renascimento português, os valores medievais, que se mantêm até muito tarde, encontram-se com os da Contra-Reforma, assumida de forma rigorosa e severa, construindo-se o poema neste universo oscilante, entre valores contraditórios.

Maria Vitalina leal de Matos, Tópicos para Uma Leitura de Os Lusíadas, Editorial Verbo, Lisboa, 2003



Reflexões presentes na obra:
. a insegurança e as falsidades da vida;

. o desânimo do poeta face ao desprezo dos portugueses pelas letras, e em especial pela poesia;

. o valor da honra e da glória;

. o elogio à tenacidade portuguesa;

. a sua infelicidade;

. a crítica aos seus opressores;

. o poder do "vil metal" - ouro;

. o significado e o valor da imortalidade.