Creio que têm já muitas notas, textos de apoio e notas para guiar as vossas análises escritas. Todavia, como sei que gostam muito de procurar outras ajudas, deixo um exemplo (apenas isso, um exemplo) de exploração temática e linguística do poema referido.
Quando fizerem os vossos não devem terminar assim, abruptamente, optando por umúltimo parágrafo de síntese interpretativa, de fecho.
EXEMPLO:
"A julgar pelo título, estamos perante uma descrição da própria alma, apresentada em três estrofes, constituindo cada uma delas uma parte do poema:
1. Na primeira estrofe temos já, em síntese, o pensamento implícito no conjunto do poema. Sendo “um fingidor”, o poeta não finge a dor que não sentiu. Finge aquela de que teve experiência directa. (...) Todavia, a dor que o poeta realmente sente não é aquela que deve surgir na sua poesia. Pessoa não considerava a poesia a passagem imediata da experiência à arte, opunha-se a toda a espontaneidade. Por isso, exigia a criação de uma dor fingida sobre a dor experimental.
O poeta, desde que se propõe escrever sobre uma dor sentida, deve procurar representar, materializando-a, essa dor, não nas linhas espontâneas em que ela se lhe desenhou na sensibilidade, mas no contorno imaginado que lhe dá(...)
Sobre o modelo da sua dor inicial, ou melhor, originária, o poeta finge a dor em imagens e fá-lo tão perfeitamente que o fingimento se lhe apresenta mais real do que a dor fingida. Assim, a dor fingida transforma-se em nova dor (imaginária), cuja potencialidade de comunicação absorve todas as virtualidades da dor inicial. Tratando-se duma transformação do plano vivido em plano imaginado, ela prepara a fruição impessoal das dores que a poesia pode proporcionar ao leitor.
2. Na segunda estrofe, os leitores de um poema não terão acesso a qualquer das dores – a dor real ou a dor imaginária: a dor real ficou com o poeta; a dor imaginária não é já sentida pelo leitor como dor, porque o não é (a dor é do mundo dos sentidos e a poesia – dor imaginária ou representada – é da esfera do espírito). Assim se compreende o último verso desta estrofe (“Mas só a que eles não têm”): os leitores só têm acesso à representação de uma dor intelectualizada, que não lhes pertence.
3. Na terceira estrofe, se a poesia é uma representação mental, o coração (“esse comboio de corda”), centro dos sentimentos, não passa de um entretenimento da razão, girando, mecanicamente, “nas calhas” (símbolos de fixidez e impossibilidade de mudança de rumo) do mundo das convenções em que decorre a vida quotidiana. Sempre a dialética do ser e do parecer, da consciência (razão) e da inconsciência (coração = comboio de corda), a teoria do fingimento.
A tripartição que apresentamos é denunciada pela conjunção “e” que inicia as 2ª e 3ª estrofes. No entanto, consoante o assunto, a composição poderia ser dividida em duas partes: a primeira constituída pelas duas primeiras estrofes onde o sujeito poético explica a sua teoria da intelectualização do sentir e a segunda constituída pela última estrofe onde ele conclui, através de uma metáfora, a veracidade dessa teoria.
O carácter verdadeiramente doutrinário deste poema faz com que predominem as formas verbais no presente (sendo o pretérito perfeito “teve”, no terceiro verso da segunda estrofe, a única excepção), tempo que conota uma ideia de permanência e que aqui aparece utilizado para sugerir a afirmação de algo que assume foros de verdade axiomática (“O poeta é um fingidor”) em que o facto de se utilizar a 3ª pessoa do singular do presente do Indicativo do verbo ser vem reforçar o atrás afirmado e impor, desde logo, a tese do poema.
A outra categoria morfológica com peso neste poema é o substantivo (poeta, fingidor, calhas, roda, razão, comboio, corda, coração), duas vezes substituído por pronomes demonstrativos (“os” no primeiro verso da 2ª quadra e “a” no último verso da mesma estrofe).
Há três advérbios de significado semelhante que é necessário referir, pela importância que assumem na caracterização das três “dores” abordadas no poema:
“finge (…) completamente” (o poeta)
“… deveras sente” (o poeta)
“…sentem bem” (os leitores)
De notar ainda o seguinte:
Na primeira quadra, há três palavras da família do verbo fingir (a tese) – fingidor, finge e fingir – e repete-se a palavra dor nos 3º e 4º versos.
Na segunda quadra, surgem-nos as formas verbais lêem, escreve, sentem, teve (= sentiu) e não têm (= não sentem), que conglobam os três tipos de dor de que atrás falamos: a dor verdadeira que o poeta teve; a dor que ele escreve e aquelas que os leitores lêem e não têm.
Na terceira estrofe, realçamos as formas verbais “gira” e “entreter”, porque sugerem a feição lúdica da poesia, cabendo à razão um papel determinante na produção poética. Enquanto ao coração cabe girar em calhas e entreter, fornecer emoções, à razão fica reservado o papel mais importante de toda a elaboração que foi apresentada nas duas primeiras quadras.
Ao nível sintáctico, verificadas as características de autêntico texto teórico que o poema reveste, o tipo de frase teria de ser o declarativo. (...)
A nível fónico, este é um poema semelhante a muitos outros de Pessoa ortónimo, de versos curtos (sete sílabas), se bem que haja, por vezes recurso ao transporte. Os versos agrupam-se em quadras e apresentam algumas irregularidades rimáticas e métricas, que não são de estranhar em F. Pessoa.
No aspecto semântico, verifica-se a utilização de uma linguagem seleccionada e simples, o que não quer dizer que a sua compreensão seja fácil. Tal fica a dever-se a vários factores:
Aproveitamento de todas as capacidades expressivas das palavras e a repetição intencional de algumas (dor, cognatas de fingir e ter, com o significado de sentir, verbo que também é usado duas vezes).
Utilização de símbolos: “comboio de corda” (brinquedo que vem sugerir o aspecto lúdico da poesia > o comboio (coração) fornece à razão o ponto de partida para a criação (fingimento); “calhas” (implicam a dependência do sentir em relação ao pensar (razão).
O uso de metáforas, com saliência para a que é constituída pelo primeiro verso do poema e para o conjunto que constitui a imagem final: o coração apresentado como um comboio de corda que gira nas calhas de roda a entreter a razão.
A perífrase do 1º verso da 2ª quadra (“Os que lêem o que escreve”, em vez de “os leitores”).
O recurso ao hipérbato, na última quadra, pela colocação das palavras fora do lugar que pelas regras normais da sintaxe, deveriam ocupar."
Melhor que tudo isto: os vossos textos. Aguardo.