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10 janeiro 2010

Autopsicografia (Intelectualização do sentir)




Creio que têm já muitas notas, textos de apoio e notas para guiar as vossas análises escritas. Todavia, como sei que gostam muito de procurar outras ajudas, deixo um exemplo (apenas isso, um exemplo) de exploração temática e linguística do poema referido.
Quando fizerem os vossos não devem terminar assim, abruptamente, optando por umúltimo parágrafo de síntese interpretativa, de fecho.

EXEMPLO:
"A julgar pelo título, estamos perante uma descrição da própria alma, apresentada em três estrofes, constituindo cada uma delas uma parte do poema:
1. Na primeira estrofe temos já, em síntese, o pensamento implícito no conjunto do poema. Sendo “um fingidor”, o poeta não finge a dor que não sentiu. Finge aquela de que teve experiência directa. (...) Todavia, a dor que o poeta realmente sente não é aquela que deve surgir na sua poesia. Pessoa não considerava a poesia a passagem imediata da experiência à arte, opunha-se a toda a espontaneidade. Por isso, exigia a criação de uma dor fingida sobre a dor experimental.
O poeta, desde que se propõe escrever sobre uma dor sentida, deve procurar representar, materializando-a, essa dor, não nas linhas espontâneas em que ela se lhe desenhou na sensibilidade, mas no contorno imaginado que lhe dá(...)
Sobre o modelo da sua dor inicial, ou melhor, originária, o poeta finge a dor em imagens e fá-lo tão perfeitamente que o fingimento se lhe apresenta mais real do que a dor fingida. Assim, a dor fingida transforma-se em nova dor (imaginária), cuja potencialidade de comunicação absorve todas as virtualidades da dor inicial. Tratando-se duma transformação do plano vivido em plano imaginado, ela prepara a fruição impessoal das dores que a poesia pode proporcionar ao leitor.

 

2. Na segunda estrofe, os leitores de um poema não terão acesso a qualquer das dores – a dor real ou a dor imaginária: a dor real ficou com o poeta; a dor imaginária não é já sentida pelo leitor como dor, porque o não é (a dor é do mundo dos sentidos e a poesia – dor imaginária ou representada – é da esfera do espírito). Assim se compreende o último verso desta estrofe (“Mas só a que eles não têm”): os leitores só têm acesso à representação de uma dor intelectualizada, que não lhes pertence.

3. Na terceira estrofe, se a poesia é uma representação mental, o coração (“esse comboio de corda”), centro dos sentimentos, não passa de um entretenimento da razão, girando, mecanicamente, “nas calhas” (símbolos de fixidez e impossibilidade de mudança de rumo) do mundo das convenções em que decorre a vida quotidiana. Sempre a dialética do ser e do parecer, da consciência (razão) e da inconsciência (coração = comboio de corda), a teoria do fingimento.
A tripartição que apresentamos é denunciada pela conjunção “e” que inicia as 2ª e 3ª estrofes. No entanto, consoante o assunto, a composição poderia ser dividida em duas partes: a primeira constituída pelas duas primeiras estrofes onde o sujeito poético explica a sua teoria da intelectualização do sentir e a segunda constituída pela última estrofe onde ele conclui, através de uma metáfora, a veracidade dessa teoria.
O carácter verdadeiramente doutrinário deste poema faz com que predominem as formas verbais no presente (sendo o pretérito perfeito “teve”, no terceiro verso da segunda estrofe, a única excepção), tempo que conota uma ideia de permanência e que aqui aparece utilizado para sugerir a afirmação de algo que assume foros de verdade axiomática (“O poeta é um fingidor”) em que o facto de se utilizar a 3ª pessoa do singular do presente do Indicativo do verbo ser vem reforçar o atrás afirmado e impor, desde logo, a tese do poema.
A outra categoria morfológica com peso neste poema é o substantivo (poeta, fingidor, calhas, roda, razão, comboio, corda, coração), duas vezes substituído por pronomes demonstrativos (“os” no primeiro verso da 2ª quadra e “a” no último verso da mesma estrofe).
Há três advérbios de significado semelhante que é necessário referir, pela importância que assumem na caracterização das três “dores” abordadas no poema:
“finge (…) completamente” (o poeta)
“… deveras sente” (o poeta)
“…sentem bem” (os leitores)
De notar ainda o seguinte:
Na primeira quadra, há três palavras da família do verbo fingir (a tese) – fingidor, finge e fingir – e repete-se a palavra dor nos 3º e 4º versos.
Na segunda quadra, surgem-nos as formas verbais lêem, escreve, sentem, teve (= sentiu) e não têm (= não sentem), que conglobam os três tipos de dor de que atrás falamos: a dor verdadeira que o poeta teve; a dor que ele escreve e aquelas que os leitores lêem e não têm.
Na terceira estrofe, realçamos as formas verbais “gira” e “entreter”, porque sugerem a feição lúdica da poesia, cabendo à razão um papel determinante na produção poética. Enquanto ao coração cabe girar em calhas e entreter, fornecer emoções, à razão fica reservado o papel mais importante de toda a elaboração que foi apresentada nas duas primeiras quadras.
Ao nível sintáctico, verificadas as características de autêntico texto teórico que o poema reveste, o tipo de frase teria de ser o declarativo. (...)
A nível fónico, este é um poema semelhante a muitos outros de Pessoa ortónimo, de versos curtos (sete sílabas), se bem que haja, por vezes recurso ao transporte. Os versos agrupam-se em quadras e apresentam algumas irregularidades rimáticas e métricas, que não são de estranhar em F. Pessoa.
No aspecto semântico, verifica-se a utilização de uma linguagem seleccionada e simples, o que não quer dizer que a sua compreensão seja fácil. Tal fica a dever-se a vários factores:
Aproveitamento de todas as capacidades expressivas das palavras e a repetição intencional de algumas (dor, cognatas de fingir e ter, com o significado de sentir, verbo que também é usado duas vezes).
Utilização de símbolos: “comboio de corda” (brinquedo que vem sugerir o aspecto lúdico da poesia > o comboio (coração) fornece à razão o ponto de partida para a criação (fingimento); “calhas” (implicam a dependência do sentir em relação ao pensar (razão).
O uso de metáforas, com saliência para a que é constituída pelo primeiro verso do poema e para o conjunto que constitui a imagem final: o coração apresentado como um comboio de corda que gira nas calhas de roda a entreter a razão.
A perífrase do 1º verso da 2ª quadra (“Os que lêem o que escreve”, em vez de “os leitores”).
O recurso ao hipérbato, na última quadra, pela colocação das palavras fora do lugar que pelas regras normais da sintaxe, deveriam ocupar."



Melhor que tudo isto: os vossos textos. Aguardo.


4 comentários:

José Cruz disse...

Fernando Pessoa ortónimo usa a dialéctica e o paradoxo, no sentido de dar aso aos seus poemas.
A unidade dos opostos é composta pela sinceridade, fingimento; consciência, inconsciência; sentir, pensar...
Fernando Pessoa, em muitos dos seus poemas conjuga a literatura e o escrever com o ignorar da vida, com um simulador de vida.
"O poeta é um fingidor", em Fernando Pessoa está o fingimento artístico do poeta. O fingir significa modelar ou imaginar, não tendo o seu significado natural, isto está muito presente nos poemas de Fernando Pessoa.
No poema "Ela canta pobre ceifeira", mora o binómio consciência/inconsciência, o poeta compara a pobre ceifeira (inconsciência) com o sujeito poético (consciência).
Neste poema também reside uma inveja intelectual, como no verso diz: "Ah, poder ser tu, sendo eu!"
Também no poema "Gato que brincas na rua", sente-se esta inveja que Fernando Pessoa demonstra com o gato.
Este ser aqui retratado, é despreocupado, livre, "criança", "És feliz porque és assim", o gato não se preocupa com o que não é, e contenta-se com o que tem.
No poema "Viajar! Perder países!, o sujeito poético oferece-nos o desejo e o sentimento de mudança, "Ser outro constantemente", de leveza/liberdade, "Por a alma não ter raízes", desejo de desenraizamento "Mais que o sonho da passagem./O resto é só terra e céu."
No poema "Autopsicografia", o poeta recorre a uma analogia "E assim nas calhas de roda/Gira, a entreter a razão/Esse comboio de corda/Que se chama coração".
Chega-nos de Fernando Pessoa a realidade de sentir com a imaginação e não com o coração.
Concluindo, Fernando Pessoa é um sonhador nato, estudioso da visão interior. Sendo um poeta cheio de ideias abstractas, onde o peso da reflexão é consideradamente grande.
O poeta conhece-se a si próprio, e a partir daí conhece toda a humanidade.

José Cruz nº 13

Laura Caetano disse...

A poesia ortónima de Fernando Pessoa estudada em aula tem diversos parâmetros, como binómios e subtemas que são facilmente identificados em várias obras.
No poema "Autopsicografia" está presente um dos binómios mais relevantes da sua poesia ortónima: coração/razão. O coração representa as emoções e sentimentos enquanto a razão engloba a lógica, o pensamento e a racionalidade. Este binómio, tal como a dicotomia consciência/ inconsciência suportam muitas das reflexões do poeta, em particular as obras analisadas em aula.
Estes binómios estão presentes nos poemas estudados em aula como "Ela canta pobre ceifeira", "Aniversário", "Gato que brincas na rua", "Isto", entre outros.
No poema "Ela canta pobre ceifeira", a vida da pobre ceifeira está relacionada com a sua alegre inconsciência. A ceifeira, mulher do campo e trabalhadora, apesar de aparentemente não apresentar motivos para sorrir, fá-lo e "canta como se tivesse mais razões p'ra cantar que a vida" devido à sua ingenuidade. O poeta, por sua vez, inveja a sua felicidade e adquire o desejo de liberdade intelectual, poder ser feliz mas consciente de tal, não intelectualizando as emoções mas permanecendo ao nível do sensível para poder desfrutar dos momentos que a racionalidade não permite. "Assim que sente, automaticamente intelectualiza essa emoção e, através disso tudo fica distante.” Esta ideia de “dor de pensar” também é sentida ao longo dos poemas “Aniversário” e “Gato que brincas na rua”, mas a ideia da inconsciência é ligada à criança e ao gato respectivamente e contrastado com o seu Eu actual e consciente.
Voltando a referir o poema “Autopsicografia”, mas também o poema “Isto”, é de marcar o “fingimento artístico” através do qual Pessoa transmite a ideia de que o significado das palavras que escreve é sentido apenas por quem as lê; o poeta apenas transcreve o que lhe vai na imaginação e não no real, o leitor é que ao ler e interpretar um poema tem de o sentir, como está patente no último verso do poema “Isto”, “Sentir? Sinta quem lê!”


Laura Caetano, 12ºC nº14

Anónimo disse...

José e Laura

Já recebi os vossos contributos. Analisarei logo que possível.

Noémia S.

Ana Filipa Gomes disse...

Fernando Pessoa foi um grande poeta do século XX, que ainda hoje é objecto de estudo para milhares de pessoas por todo o mundo. A sua escrita é bastante apreciada pelos críticos que afirmam que um dos temas da sua escrita é a infância, apoiada na dicotomia sonho/realidade e consciência/inconsciência.
O poeta constrói a sua poesia com base neste binómios e na sua reflexão interior sobre o que há de mais profundo no ser humano: os sentimentos e emoções. “Abrindo a janela para dentro de si” o autor consegue, como ele próprio um dia referiu, conhecer toda a Humanidade.
Conhecendo parte da sua Obra onde retrata a infância é visível a associação, por parte do poeta, desta fase da vida a um paraíso perdido do qual sente nostalgia e desejo de reviver essa época e também a representação de três figuras, que na sua opinião retratam este estádio: a criança, o gato e a ceifeira, que em comum têm a liberdade e a inconsciência de pensar. A associação da criança à infância parece-nos a todos lógica, por outro lado as duas restantes suscitam-nos certas dúvidas. A ceifeira, apesar de adulta, encontra-se relacionada à infância devido ao seu modo despreocupado de ver a vida e o gato pelo facto de não ter de dar qualquer justificação nem lhe ser exigido nada.
Esta ideia é notória no poema “Gato que brincas na rua”: “És feliz porque és assim,/Todo o nada que és é teu/ Eu vejo-me e estou sem mim,/Conheço-me e não sou eu” e no poema “Ela canta, pobre ceifeira”: “Ah, poder ser tu, sendo eu!/Ter a tua alegre inconsciência”
Fernando Pessoa proferiu um dia que “As circunstâncias da minha vida, desde criança (…) fizeram do meu espírito uma constante corrente de devaneios”, afirmando que não fez mais nada ao longo da sua existência que não sonhar e esse hábito conferiu-lhe uma extraordinária visão interior. Na minha opinião, o sonho não é um hábito do poeta, mas sim uma condição.